Entre Hércules e Dom Quixote

O acto de vestir uniforme e subir em uma bicicleta nos transforma. Deixamos de ser mais um na multidão, e passamos a ser Alguém Diferente. Atletas, mais precisamente. E singrando pelas ruas e estradas, alimentando-nos dos olhares ora incrédulos, ora admirados, mas nunca indiferentes do "resto da população", sentimo-nos fortes, poderosos, heróis com uma missão a cumprir. Somos, em nossa visão, Hércules montado em Pégasus. Já aos olhos dos outros, talvez a interpretação seja diferente. Alguns nos enxergam como desocupados (a essa hora...pedalando...); para outros, somos adultos que não cresceram (pai de família...vestindo essas roupas....); e talvez ainda há quem nos tome por cômicos (olha só pra ele...de perninha raspada....bermuda colada...e língua de fora...). Podem acreditar. Perante os outros, Hércules imponente montado em Pégasus se transforma facilmente em Dom Quixote equilibrando-se precariamente em Rocinante. Mas nem Hércules nem Dom Quixote são reais. São imagens - de nossos sonhos e nossas ilusões, misturadas aos devaneios dos outros. O que somos, então, enquanto pedalamos? Se não somos Deuses do Olimpo nem Perseguidores de Moinhos, quem somos? Somos o resultado de bons motivos ou maus motivos. E levados por eles, somos Bons Ciclistas ou Maus Ciclistas. Bons Ciclistas vão pedalar porque precisam sentir o vento no rosto; porque precisam fazer seu sangue circular mais rápido; porque descer uma montanha de bicicleta é a coisa mais perto de voar sem precisar de asas e porque sofrer subindo a mesma montanha redime muitos pecados; porque bater papo e pedalar em direção ao por do sol é mágico; porque pedalar de madrugada no frio ou ao meio dia sob quarenta graus são coisas que nos reconectam à natureza, e nos tornam humildes diante dela. Bons Ciclistas tem muitos amigos, alguns dos quais também adversários. Maus Ciclistas pedalam para descontar em alguém ou na estrada suas frustrações e sua raiva; porque precisam vencer na estrada para compensar derrotas pessoais; porque mesmo que não tenham condições de vencer honestamente podem mesmo assim vencer; porque competir é necessário mas vencer é preciso; Maus ciclistas encaram o segundo lugar como o primeiro perdedor. Maus ciclistas tem muitos adversários, alguns dos quais também inimigos. Entre Hércules e Dom Quixote há somente maus e bons ciclistas. Invisíveis, disfarçados, mas sempre presentes. E se você ainda não sabe qual deles lhe motiva, o tempo se encarregará de mostrar. Pois para aqueles que pedalam e competem com você dia após semana após mês após ano, o Tempo será o responsável por fazer com que a imagem de Dom Quixote se disfaça, e a máscara Hércules caia. E restará então, diante deles e de você mesmo, somente a verdade. Restarão seus motivos e seus actos. (in bloger/google)